*Cleber Ferreira
A primeira Resolução de Diretoria Colegiada, a RDC nº 1[1], publicada pela ANVISA em 1º de outubro de 1999, dispunha sobre o exercício de poder de polícia pelos agentes da ANVISA.
Nela, constava a necessidade de designação prévia, sendo elegíveis os servidores de seu quadro de pessoal heterogêneo em formação, com destaque para os servidores efetivos redistribuídos do Ministério da Saúde, da Fundação Nacional de Saúde e de outros órgãos para a agência.
Não existiam ainda carreiras próprias da regulação nas agências, que somente seriam criadas a partir de 2004, com a Lei nº 10.871, fruto da inconstitucionalidade declarada do exercício de atividades exclusivas de estado por pessoal sem vínculo com o estado e sem estabilidade. Portanto, os servidores de portos, aeroportos e fronteiras formaram o denominado quadro específico da então ANVS, entre 1999 e 2004, majoritariamente lotados nas 27 coordenações de Vigilância Sanitária em Portos, Aeroportos e Fronteiras (PAF´s) então existentes, somando 1.109 do total de 1.589 servidores da ANVISA em 2006[2], correspondendo a 70% do quadro de servidores permanente da agência.
A partir de 2004 iniciou-se a substituição dos quadros temporários (n=125), terceirizados de apoio administrativo (380) e pessoal requisitado (n=411) por servidores das novas carreiras, através da realização de concursos públicos em 2004, 2007, 2013 e 2016. Os servidores das novas carreiras, denominadas de quadro efetivo, substituíram o pessoal sem vínculo, sendo lotados quase exclusivamente na sede em Brasília e em duas unidades no Rio de Janeiro, enquanto os servidores do quadro específico, pertencentes ao Plano Especial de Cargos (PEC), continuaram a exercer suas atividades nas PAF´s, delineando assim o quadro permanente de servidores de carreira da ANVISA.
Todavia, a ANVISA nunca realizou reposição das vagas dos servidores de portos, aeroportos e fronteiras na medida em que os mesmos foram se aposentando. Dos 1.107 servidores em 2006 restam em 2021 aproximadamente 300 servidores ativos nas PAF´s, a maioria idosos prestes a se aposentar, representando uma redução de mais de 73% da força original de trabalho ³.
Expostos ao combate à pandemia, sem reposição dos quadros, adoecem e padecem diante da sobrecarga de trabalho no final de sua trajetória profissional, sem fugir à luta.
Com a fiscalização presencial prejudicada por falta de pessoal, restou a análise documental, burocrática e à distância, com a formação de forças tarefas eventuais para suprir emergencialmente a falta de pessoal, em plena emergência sanitária. O Sinagências tem assistido financeiramente as famílias de alguns filiados em situações extremas que adoeceram ao longo do caminho, com intuito de amenizar o sofrimento.
Em seu Relatório de Gestão de 2020, assim como nos anteriores, a ANVISA alega que o §2º do artigo 19 da Lei nº 9.986/2000 obrigaria a extinção automática destas vagas por força legal, não sendo possível a reposição destes cargos extintos por novos cargos do quadro efetivo. Todavia, é incorreto este entendimento.
O §3º do mesmo artigo 19 da Lei nº 9.986/2000 prevê:
“À medida que forem extintos os cargos ou empregos dos Quadros de que trata este artigo, é facultado à Agência o preenchimento de empregos de pessoal concursado para o Quadro de Pessoal Efetivo.”
Não se sabe o motivo. O fato é que a ANVISA nunca solicitou autorização para o preenchimento das quase 900 vagas dos cargos extintos nas PAF´s desde sua criação, em 1999, condenando as PAF´s à extinção, lenta e progressivamente.
As vagas dos cargos extintos do quadro específico poderiam ter sido preenchidas de acordo com a previsão legal existente, gerando novas vagas dos cargos do quadro efetivo nas PAF´s. Já se passaram 22 anos de oportunidades perdidas, com a realização de 4 concursos, incluindo até mesmo autorização excepcional para substituição de terceirizados no passado, ou a contratação de celetistas da Infraero no presente. Mas nunca houve solicitação de um único concurso público visando o preenchimento das vagas oriundas dos cargos extintos nas PAF´s.
Hoje, em função da pressão política e volume de trabalho gerados e acumulados pela pandemia, os poucos servidores remanescentes do quadro específico, todos idosos e muitos já apresentando comorbidades importantes, continuam expostos a situações de risco. Férias, pedidos de aposentadorias ou afastamentos temporários dos servidores remanescentes ainda ativos podem interromper a qualquer momento as atividades nas PAF´s, exigindo medidas emergenciais e paliativas da gestão diariamente.
Em recente manifestação por ocasião de desembarque de passageiros oriundos de cruzeiro marítimo no Porto de Santos (SP), circulou nas redes sociais um vídeo de viajantes desferindo em coro palavras de ordem ofensivas contra a ANVISA.
O sindicato tem recebido há tempos demandas sobre a precarização dos ambientes de trabalho nas PAF´s remanescentes; denúncias sobre fechamento de PAF´s durante a pandemia; problemas operacionais diversos, como falta de insumos, pessoal, transporte em diligências, instalações físicas precárias e dificuldades para realização de tarefas, inclusive as relacionadas aos equipamentos e condições necessárias a continuidade do trabalho remoto.
O diálogo do Sinagências com a quinta diretoria da ANVISA sempre foi muito produtivo e cordial, mas a solução do problema de pessoal permanece distante, fora da governabilidade de uma única diretoria. Cada diretoria na ANVISA é um quadrado e os interesses entre as diretorias nem sempre são convergentes, em especial sobre necessidade de pessoal.
O pedido de proteção feito a Polícia Federal para os Diretores da agência diante de ameaças em função da aprovação da vacina para crianças, na sede em Brasília, não alcançam os servidores em exercício nas PAF`S, algumas funcionando sem a cobertura mínima de uma segurança patrimonial. Dois pesos, duas medidas.
Com a aposentadoria do último servidor do quadro específico nas PAF´s se aproximando, chegará ao fim também uma parte viva da história da vigilância sanitária brasileira: aquela que fiscalizava presencialmente, olho no olho, container por container, visando a segurança sanitária de nossa população. Havia orgulho, e não medo, ao se vestir o colete da fiscalização da ANVISA.
O pedido de autorização da ANVISA para realização de concurso público em 2022, voltado mais uma vez para o preenchimento de 75 cargos vagos em seu quadro efetivo, além da contratação de empregados celetistas da Infraero para as PAF´s, denunciam a continuidade da política de extinção progressiva das PAF´s, fechando a fatura de uma dívida histórica da ANVISA com seus servidores do quadro específico (PEC), ativos e inativos; e com a memória daqueles que já se foram ou tombaram pelo caminho, mas que na caminhada também construíram a sua história e a história deste Sindicato.
A luta continua.
O Sinagências não deixa ninguém para trás.
Veja ofício abaixo enviado a ANVISA
Referências:
[1] http://antigo.anvisa.gov.br/documents/10181/2718376/RDC_1_1999_COMP.pdf/cd775c08-71f9-44d4-9218-bbb86f1644b6
[2] Relatório de Gestão 2008, fl. 87, em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/centraisdeconteudo/publicacoes/gestao/relatorios-de-gestao/relatorio-de-gestao-da-anvisa-2008.pdf
[3] https://www.gov.br/anvisa/pt-br/centraisdeconteudo/publicacoes/gestao/relatorios-de-gestao/relatorio-de-gestao-2020.pdf fl.153
*Cleber Ferreira é Mestre e Doutor em Odontologia em Saúde Coletiva pela Universidade Federal Fluminense, Especialista em Regulação em Saúde Suplementar e Presidente do Sinagências.