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Disputa pelo poder na ANVISA expõe crise de governança e judicialização nas Agências Reguladoras. Entenda o problema.

  1. Segundo matéria publicada no UOL, a Diretora Cristiane Jourdan processa a União para permanecer 5 anos como Diretora da ANVISA[1].
  2. O problema refere-se ao termo dos mandatos fixos e não coincidentes nas diretorias e conselhos das agências e a inobservância histórica dos prazos corretos nos decretos de nomeação, tanto na lei geral das agências antiga (Lei nº 9986/2000) como na nova Lei nº 13.848/2019.
  3. Antes da nova Lei, o tempo dos mandatos na ANVISA eram de 3 anos.
  4. Ocorre que ao fim do prazo de 3 anos, quase sempre havia um longo período de vacância até que um novo diretor fosse indicado, sabatinado, aprovado, nomeado e tomado posse. Nestes casos, os novos mandatários deveriam apenas cumprir o prazo remanescente do mandato fixo, sucessor ou novo, previsto em lei, sem direito a acréscimos no prazo original de 3 anos.
  5. Todavia o prazo do mandato fixo nunca foi observado nos diferentes decretos de nomeação na ANVISA (e também em outras agências, com termo de mandatos maiores, de 4 ou 5 anos), tendo como resultado que todos os novos mandatários ganhavam 3 anos de mandato, independentemente do tempo de vacância ou do prazo remanescente previsto no sistema de mandatos fixos não coincidentes. Como consequência, o sistema de mandatos não coincidentes, princípio basilar de governança das agências reguladoras, foi sendo fraudado desde sua implantação, apesar da vedação contida no § 3º do artigo 6º do decreto nº 3.029/1999, vigente até setembro de 2019:”

        “§ 3º Na hipótese de vacância de membros da Diretoria, o novo Diretor será nomeado para cumprir período remanescente do respectivo mandato.”

  1. A nova Lei estipulou nova regra de transição para mandatos que viessem a terminar em um mesmo ano, visando restaurar o sistema de mandatos não-coincidentes descumprido anteriormente (artigo 50 da Lei nº 13.848/2019). Excepcionou a possibilidade de recondução somente para novos mandatários que viessem a cumprir mandatos remanescentes inferiores ou iguais a 2 anos, ou fossem enquadrados na regra de transição.
  2. A nova lei também vinculou a função da presidência a um dos cargos diretivos, anteriormente sem vinculação. Consequentemente, o novo cargo de diretor presidente poderia ser exercido por qualquer um dos mandatários em exercício, mantendo-se o termo fixado de seu mandato original, ou mesmo por um novo mandatário que não pertencesse ao colegiado, cumprindo o tempo do mandato remanescente original.
  3. No caso de um diretor já em exercício, deveria completar o tempo de seu mandato original no novo cargo de presidente, após a nova indicação, sabatina, aprovação e nomeação para o exercício do cargo. Não há previsão legal para acumular o tempo já exercido no cargo anterior com o novo cargo de presidente.
  4. No caso da ANVISA, Antônio Barra Torres foi nomeado na vaga decorrente do término do mandato de Jarbas Barbosa da Silva Júnior. O mandato fixo ocupado por Jarbas terminou em 19 de julho de 2018, antes da nova Lei das Agências entrar em vigência. Portanto, o prazo do mandato sucessor de Jarbas Barbosa teria duração fixa de 3 anos, iniciando em 20 julho de 2018 e terminando em 19 de julho de 2021, conforme legislação então vigente (3 anos).
  5. Barra Torres foi nomeado em 24 de julho de 2019, decorridos 1 ano e 5 dias na vacância do término do mandato de Jarbas Barbosa, e antes da vigência da nova Lei das Agências, em setembro de 2019, em conformidade com o artigo 53 da Lei nº 13.848/2019. Portanto, Barra Torres deveria cumprir o mandato remanescente de 1 ano e 360 dias na vaga decorrente do término do mandato de Jarbas Barbosa, com direito a recondução, uma vez que o tempo remanescente seria inferior a 2 anos.
  6. Todavia, o Decreto de nomeação do 1º mandato de Barra Torres, de 24 de julho de 2019, ampliou o prazo do mandato remanescente da vaga decorrente do término do mandato de Jarbas Barbosa para 3 anos completos, mesmo diante da vacância de 1 ano e 5 dias já consumada. Com a ampliação irregular, o mandato da vaga decorrente do termino do mandato de Jarbas Barbosa completará 4 anos em 19 de julho de 2022.
  7. Nunca houve previsão legal para um diretor de agência, no curso de seu mandato, ser nomeado em outra vaga diretiva, em outro mandato, também em curso. O efeito desta “manobra” resultaria na subversão da vedação para recondução prevista na nova Lei. Consequentemente, possibilitaria a ampliação de um termo do mandato em curso através da adição do tempo de um outro mandato em vacância sob a justificativa de serem cargos “diferentes”.
  8. Criou-se assim um precedente que afronta o princípio fundamental de governança das agências, podendo um mesmo mandatário se alternar em cargo diretivo e cargo de presidência no colegiado eternamente, ao ser nomeado de um mandato diretivo em curso para outro, somando-se os tempos de mandatos diferentes, em ciclos de 5 anos cada.
  9. O Tribunal de Contas da União (TCU) já verificou vício de ilegalidade constante na indicação do Conselheiro Carlos Manuel Baigorri, que já ocupava cargo no Conselho Diretor da ANATEL, ao cargo de Presidente daquele Conselho, com novo prazo de mandato de cinco anos e sua permanência como membro do Conselho por prazo superior a seis anos.
  10. No caso de Barra Torres, a publicação de um novo Decreto de nomeação, desta vez na vaga remanescente de William Dib, ampliou seu mandato original remanescente de 1 ano e 360 dias para novos 5 anos e 5 meses, considerando a soma dos dois mandatos distintos, violando assim a nova Lei que ampliou o prazo dos mandatos para 5 anos, vedando a recondução.
  11. Barra Torres continuou na Diretoria Colegiada da AVISA em outra vaga em vacância desde 4 de novembro de 2020, decorrente do término do mandato de William Dib, ocorrido em dezembro de 2019, fixando novo prazo de mandato, desta vez até 21 de dezembro de 2024. Neste caso, descontou-se a vacância do prazo do mandato de William Dib, ao contrário do que acontecera ao assumir o mandato de Jarbas Barbosa anteriormente.
  12. Em resumo, Barra Torres permanecerá membro da Diretoria Colegiada da ANVISA de 24 de julho de 2019 até 21 de dezembro de 2024, totalizando 5 anos e 5 meses como mandatário, burlando o tempo máximo de 5 anos de mandato previsto em lei.
  13. Conforme o acórdão do TCU, bastaria incorporar a nova função (CD-I) ao cargo diretivo que Barra Torres já ocupava na ANVISA (CD-II), uma vez que não havia vinculação entre o mandato diretivo que William Dib ocupou e o exercício da função de presidente na Lei anterior. Ademais, Barra Torres já exercia a presidência da ANVISA de forma interina e poderia ser reconduzido ao final de seu termo de mandato.
  14. Somente a partir de setembro de 2019, com a vigência da nova Lei das Agências, é que um dos mandatos diretivos passaria a estar vinculado ao cargo de diretor presidente, após indicação, sabatina, aprovação e nomeação. Assim, Barra Torres deveria ter sido nomeado Diretor Presidente e ter permanecido em seu mandato em curso até completar o tempo remanescente de seu mandato original, pelo período remanescente de 1 ano e 360 dias.
  15. A vaga original de 3 anos aberta em decorrência do término do mandato de Jarbas Barbosa, em julho de 2018, também preenchida por Barra Torres em julho de 2019, passou então a ser ocupada por Cristiane Rose Jourdan, para exercer o cargo de Diretora da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, com mandato até 24 de julho de 2022, na vaga decorrente da nomeação de Antônio Barra Torres ao cargo de Diretor-Presidente, conforme o Decreto de nomeação publicado em 4 de novembro de 2020.
  16. A Redação deste último Decreto oculta a vaga que Cristiane Jourdan deveria ocupar, embora se tratasse justamente da vaga decorrente do término de mandato de Jarbas Barbosa, em julho de 2018.
  17. Cristiane Jourdan herdou na realidade o mandato sucessor “estendido” de Jarbas Barbosa, agora de 4 anos, de julho de 2018 até 24 de julho de 2022. Como se trata de uma vaga que deveria ser de 3 anos, com prazo iniciado antes da vigência da nova Lei, o correto seria que o mandato de Cristiane Jourdan durasse apenas até 24 de julho de 2021 pois a duração dos mandatos fixos e não coincidentes não poderiam sofrer alterações em função de vacâncias ou nomeações de qualquer espécie.
  18. Como sua nomeação aconteceu em 4 de novembro de 2020, já na vigência da nova Lei, Cristiane poderia até ser reconduzida ao final do termo, em julho de 2021, para um novo mandato de 5 anos, pois assumiu a vaga com período remanescente inferior a 2 anos.
  19. Cristiane Jourdan expôs à mídia seu entendimento, fazendo ilações de que motivações políticas estariam tramando contra sua permanência no colegiado pelo prazo de 5 anos, e agora ingressou no judiciário contra a União.
  20. Em síntese, tanto Barra Torres quanto Cristiane Jourdan se encontram em situação irregular na ANVISA.
  21. Barra Torres porque não poderia migrar de um mandato para outro pois nunca existiu esta previsão na Lei. Com a migração, garantiu sua permanência por mais de 5 anos no colegiado da ANVISA. Tal fato abriu caminho para que outros casos semelhantes ocorressem na ANAC, ANS e na ANATEL, este último objeto do recente acórdão do TCU.
  22. No caso de Cristiane Jourdan porque foi nomeada na vaga decorrente do término do mandato de Jarbas Barbosa, ocorrido em julho de 2018, vaga que passou a ser ocupada por Barra Torres entre julho de 2019 e novembro de 2020 e que deveria já ter terminado em julho de 2021. Mas Cristiane continua em exercício, judicializando a questão.
  23. A recondução de Cristiane Jourdan seria até possível pela nova Lei das Agências pois o tempo de mandato remanescente de Cristiane Jourdan seria de apenas 7 meses, de 4 de novembro de 2020 até julho de 2021. Mesmo com a ampliação irregular de seu mandato para julho de 2022, ainda assim teria direito a ser reconduzida para um novo mandato de 5 anos pois teria exercido menos de 2 anos de exercício no mandato “ampliado” remanescente. Apenas teria direito pois necessitaria de nova indicação e sabatina.
  24. Os outros diretores da ANVISA foram nomeados regularmente em vagas decorrentes do término de mandatos ocorridos após a vigência da nova Lei das Agências, a partir de setembro de 2019, estando todos em situação de regularidade, cumprindo o prazo de mandato remanescente de 5 anos de duração.
  25. Meiruse Freitas foi nomeada em 4 de novembro de 2020 na vaga decorrente do término do mandato de Renato Porto, que renunciou dias antes do término de seu mandato, em dezembro de 2019, na vigência da nova Lei. Portanto, seu mandato será de 5 anos, descontados o tempo de vacância.
  26. Alex Machado Campos foi nomeado em 4 de novembro de 2020 na vaga decorrente do término do mandato de Fernando Mendes, que ocorreu em março de 2020, na vigência da nova Lei, com direito a cumprir o tempo remanescente de 5 anos do mandato original.
  27. Rômison Mota, da mesma forma, foi nomeado em julho de 2021 na vaga decorrente do término do mandato de Alessandra Bastos Soares, ocorrido em dezembro de 2020, também na vigência da nova Lei, pelo tempo remanescente de mandato de 5 anos.
  28. Está nas mãos do Judiciário, do Ministério Público Federal e do TCU a análise da questão.

[1] https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2022/06/15/diretora-anvisa-processo.amp.htm

 

*Cleber Ferreira é  presidente do Sinagências e especialista em regulação.