Corte de verbas, loteamento político e uma brutal oposição do próprio governo ameaçam a sobrevivência dos órgãos reguladores
Por Gustavo Paul
26.10.2005
Na tarde de 22 de setembro, executivos da Associação Brasileira dos Grandes Consumidores Industriais de Energia Elétrica (Abrace) tiveram uma reunião tensa em Brasília com a diretoria da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), responsável pela regulação do setor. O governo havia se comprometido a aprovar até maio uma resolução que reduziria a tarifa de energia — e nada aconteceu. "É inaceitável que algo prometido não tenha saído após tantos meses", afirma Eduardo Spalding, vice-presidente da Abrace. Ao final do encontro, o próprio diretor-geral da Aneel, Jerson Kelman, reconheceu o erro. "A responsabilidade é nossa", diz Kelman, com uma franqueza incomum no setor público. "A Aneel, de fato, não tem funcionado bem. Infelizmente, temos poucas pessoas para cuidar do assunto."
O episódio envolvendo a Aneel é apenas a ponta de um iceberg — a crise sem precedentes por que passam as agências reguladoras brasileiras. Criadas a partir de 1997 para fazer o meio-de-campo entre os governos, que têm interesses políticos imediatos, e as empresas privadas, que possuem dinheiro para investir, as agências vivem nos últimos tempos sob constante ataque. Há pessoal e recursos de menos, sobram conflitos políticos. Os problemas começaram logo no início da gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Lula nunca escondeu sua antipatia pelas agências, a ponto de, em fevereiro de 2003, ter dito a um grupo de aliados que elas "terceirizaram o Estado, eram um poder paralelo e estavam acima da lei". Desde então, o governo iniciou uma lenta — e persistente — campanha para aniquilar o poder decisório das agências. Não há sinalização pior para os investidores, já que o modelo de regulação só faz sentido se os órgãos funcionam livres da interferência dos governos de plantão e com recursos suficientes para operar. "Agências desacreditadas afastam o investimento privado", diz Ralph Lima Terra, vice-presidente executivo da Associação Brasileira da Infra-estrutura e Indústria de Base (Abdib). "São elas que garantem o equilíbrio entre direitos e deveres do Estado e do concessionário público."
Um dos problemas mais agudos é a falta de recursos. Com o contingenciamento de verbas orçamentárias determinado pelo Ministério da Fazenda, até setembro o caixa das cinco principais agências só recebeu 59% do valor aprovado pelo Congresso. A proposta de orçamento para 2006 prevê que receberão 27% menos do que foi autorizado para este ano e a metade do que foi pedido pelos órgãos. "Estamos perdendo eficiência na fiscalização da qualidade de serviços de telefonia", afirma Elifas Amaral Gurgel, presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Em agosto, o nó das verbas veio a público quando Gurgel determinou o fim do atendimento ao consumidor da Anatel, que recebia 10 000 ligações diárias. A decisão irritou o ministro das Comunicações, Hélio Costa, mas surtiu efeito: 20 milhões de reais foram desbloqueados e o serviço voltou a funcionar. Desde então, Costa não perde uma oportunidade para estocar a Anatel. Outras agências também têm sentido o efeito do corte de verbas. Na Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), responsável pela área portuária, a falta de recursos impede até mesmo a realização de visitas periódicas a todos os portos para fiscalização. "Gostaríamos de reduzir o risco de acidentes numa área estratégica para a economia, mas não estamos conseguindo", diz Carlos Alberto Nóbrega, diretor-geral da Antaq.
A falta de recursos esconde um paradoxo: as agências têm dinheiro — muito dinheiro –, mas não podem gastá-lo. As verbas estão retidas no cofre do Tesouro Nacional e servem para ajudar no equilíbrio das contas públicas. A prática vem sendo adotada desde o governo Fernando Henrique Cardoso. Só a Anatel arrecada 1 bilhão de reais por ano com o Fundo de Fiscalização das Telecomunicações, cobrado das empresas e, em última instância, pago pelos consumidores. A Aneel tem uma taxa semelhante que rende 200 milhões de reais por ano. Servindo apenas para aumentar o custo da energia, as associações ligadas ao setor elétrico reivindicam sua extinção.
A escassez de recursos acaba enfraquecendo a qualidade do corpo técnico. Em dois recentes relatórios sobre a Anatel e a Aneel, a Câmara Americana de Comércio (Amcham) destaca a baixa capacitação técnica das agências e o quadro de recursos humanos "insuficiente e sem treinamento". Os próprios órgãos admitem graves problemas de pessoal, particularmente após uma determinação do governo de afastar até dezembro todos os funcionários com contratos temporários. Para os reguladores, isso representará a evasão de boa parte da memória e do corpo técnico especializado. O caso mais grave é o da Aneel, que tem 260 funcionários ameaçados. "É uma situação dramática", diz Isaac Averbuch, diretor da agência. Uma solução temporária seria a prorrogação dos contratos por mais um ano, até que novos funcionários possam ingressar nos órgãos e ser treinados. Diante da pressão dos dirigentes das agências, já há uma sinalização positiva do Ministério do Planejamento nesse sentido. "Adverti o ministro Paulo Bernardo de que haverá um colapso sem essa prorrogação", diz Kelman.
A tentativa de reforçar o quadro permanente também se tornou uma dor de cabeça. Nos últimos meses, vários concursos públicos foram realizados, mas o resultado é pouco animador. Depois de se submeter a testes rigorosos, muitos aprovados simplesmente estão desistindo de assumir seus cargos, atraídos por outros concursos que paguem mais que o salário de 3 000 reais oferecido. No caso da Aneel, havia 290 vagas, mas só 215 foram preenchidas. Nas últimas semanas, 16 pessoas já desistiram. A Anatel tem vagas em aberto em nove estados. Uma das razões é a morosidade do governo. Até setembro ainda não haviam sido regulamentadas as gratificações, previstas na lei, que elevariam um pouco mais o salário do quadro de nível superior das agências. "Estamos falando de funcionários que vão lidar com interesses que valem bilhões de reais e com a vida de milhões de pessoas", diz Kelman. São problemas que acabam incomodando a iniciativa privada. A multinacional de alumínio Novelis tenta há um ano obter uma simples autorização para alterar sua conexão elétrica. Enquanto isso, paga o dobro pela energia que consome.
Tão ou mais grave que a escassez de recursos financeiros e de pessoal é a ingerência política e a ocupação de diretorias sem critérios técnicos. "As agências estão deixando de ser órgãos de Estado para ser instrumentos do governo", afirma o advogado Fernando Pinheiro, coordenador das pesquisas da Amcham. O caso mais escandaloso envolve a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), responsável por um leque amplo de assuntos, como as concessionárias de ferrovias e rodovias e o transporte de passageiros. A exemplo da conduta em outros órgãos da administração direta, em 2004 o governo escolheu três dos cinco diretores da ANTT tendo como único critério o QI ("quem indica"). Quebrou, assim, a noção de que a competência técnica tem de prevalecer na definição dos nomes. Um dos escolhidos, o publicitário Francisco de Oliveira Filho, é sobrinho do ministro das Comunicações, Hélio Costa. Outro indicado é José Airton Cirilo, candidato do Partido dos Trabalhadores derrotado ao governo do Ceará em 2002. O terceiro, Gregório de Souza Rabelo, ganhou a vaga após ter seu nome defendido pelo senador Valmir Amaral (PTB-DF), da base aliada do governo e dono de empresas de ônibus. Isso mesmo: o governo nomeou para uma agência que regula transporte de passageiros um apadrinhado de um empresário do setor. "É um escândalo, mas a decisão fez parte de acor dos políticos acertados no Palácio do Planalto", diz um constrangido membro do governo. "Tudo isso enfraquece a autoridade dos órgãos diante dos empresários e usuários." A direção da ANTT não quis comentar a questão com EXAME.
A verba das agências em 2006 deve ser 27% menor que a de 2005
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As empresas do setor já acusam prejuízos com a atuação de uma diretoria tecnicamente fraca. Pela primeira vez, houve atraso nos reajustes dos pedágios das concessionárias da Rodovia Presidente Dutra, que liga São Paulo ao Rio de Janeiro, e da ponte RioNiterói. Em vez de ser concedidos no dia 1o de agosto, foram aprovados 19 dias depois. Essa defasagem de tempo, ainda que pequena, penalizará o usuário, pois será compensada no reajuste do próximo ano. Mais grave é o caso da ALL, operadora de ferrovias na Região Sul, que teve de esperar sete meses para ver suas tarifas reajustadas. A demora das decisões da ANTT fez uma grande concessionária de ferrovias perder um financiamento de 180 milhões de reais de bancos nacionais e estrangeiros para aquisição de locomotivas e reforma da infra-estrutura.
O ambiente nas agências ficou ainda pior com a crise política iniciada em maio. Com outras prioridades, o governo simplesmente não indica nomes para ocupar diretorias vagas. Há na Aneel duas cadeiras vagas desde maio. A Antaq está sem um diretor desde fevereiro. Em novembro, a Anatel deverá ter o quinto presidente em cinco anos, com a provável saída de Elifas Gurgel, que colidiu com Hélio Costa. Desde janeiro, a Agência Nacional de Petróleo (ANP) é dirigida interinamente pelo ex-deputado federal pelo PCdoB, Haroldo Lima. O governo tentou emplacar o nome do engenheiro químico José Fantine para a direção da ANP, mas o Senado recusou — e, desde então, nenhum outro nome foi apresentado. A ANP, aliás, se vê às voltas com problemas até mais sérios. Em junho, a agência instalou uma comissão de sindicância para investigar importações de solventes feitas desde 2003, que cresceram 78% nos quase dois anos em que o engenheiro Eugênio Roberto Maia, indicado para o cargo pelo PTB e com bom trânsito entre políticos de vários partidos, ocupou a superintendência de abastecimento. A suspeita é que o produto estaria sendo usado para adulterar gasolina. Depois da denúncia, Maia foi deslocado para outra superintendência. Haroldo Lima está em férias e os demais diretores da ANP não atenderam EXAME para comentar sobre os problemas da agência.
Mas a crise política teve pelo menos um efeito positivo — paralisou o trâmite de um projeto de lei do governo que conseguiu desagradar praticamente todo mundo. O texto, feito para submeter as agências ao governo, foi tão criticado que está parado desde dezembro do ano passado. O problema é a indefinição que isso gera. Enquanto nada ocorre, observa-se uma verdadeira queda-de-braço entre governo e agências. No porto de Salvador, por exemplo, a cobrança de uma taxa de 225 reais por contêiner continua sendo efetuada, apesar de uma decisão contrária da Antaq. A Companhia Docas da Bahia, por enquanto, segue uma outra decisão do Ministério dos Transportes, que considera a taxa legal.
Ressalte-se que, mesmo aos trancos e barrancos, as agências continuam exercendo suas atividades, sem grandes desvios que possam comprometer por completo o modelo implantado na década passada. Mas os problemas refletem um cenário preocupante. Interferindo cada vez mais em órgãos que devem ter, por definição, independência administrativa e autonomia financeira, o governo quebra o equilíbrio da regulação. Para investimentos que precisam de anos para maturar, esse cenário não funciona. "Os investidores ficam cada vez mais temerosos de colocar seu dinheiro no país. Se não se consegue nem assegurar a estabilidade do órgão regulador, como garantir a estabilidade dos investimentos?", questiona Renato Guerreiro, ex-presidente da Anatel.
Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel)
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Função: regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia
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Orçamento em 2005:
· 120 milhões de reais aprovados
· 89 milhões de reais liberados
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Problema: há duas vagas não preenchidas de diretores desde maio. Falta pessoal para tocar as atividades.A saída de funcionários temporários pode paralisar a agência a partir de janeiro
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Agência Nacional do Petróleo (ANP)
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Função: regular, contratar e fiscalizar a indústria de petróleo e gás
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Orçamento em 2005:
· 141 milhões de reais aprovados
· 80 milhões de reais liberados
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Problema: a ANP está sem diretor-geral definitivo desde janeiro. A redução do orçamento coloca em risco boa parte dos contratos e convênios assinados pela agência
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Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel)
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Função: regular e fiscalizar as telecomunicações
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Orçamento em 2005:
· 377 milhões de reais aprovados
· 150 milhões de reais liberados
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Problema: o contingenciamento de recursos está prejudicando as atividades de fiscalização em todo o país e coloca em risco projetos para 2006
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Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT)
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Função: regular e supervisionar o transporte ferroviário e rodoviário, além da fiscalização das concessões ferroviárias e rodoviárias
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Orçamento em 2005:
· 142 milhões de reais aprovados
· 114 milhões de reais liberados
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Problema: três dos cinco diretores do órgão foram indicações políticas. A falta de qualificação técnica da diretoria está atrasando várias decisões da agência
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