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ARTIGO NO JOTA- Por Cleber Ferreira – “A regulação sob fogo cruzado”

*Cleber Ferreira

A regulação no Brasil foi introduzida na Constituição Federal, em meados da década de 1990, para regular e fiscalizar setores como o das telecomunicações e o da exploração de petróleo, através de órgãos reguladores com estrutura decisória colegiada, mandatos fixos e não coincidentes de seus dirigentes e quadros técnicos especializados.

Com a missão de defender o interesse público nas atividades privadas de relevância pública, as 11 agências reguladoras nacionais regulam e fiscalizam, com poder de polícia, setores essenciais da atividade econômica do país, através da mediação de conflitos, aliviando o Judiciário; da elaboração de normas, que protegem os cidadãos, as empresas e os profissionais das falhas e assimetrias de mercado e de informação; das posições dominantes de grandes empresas, em defesa da concorrência e, principalmente, na qualificação da tomada de decisões, através da realização de estudos técnicos e levantamento de dados; identificando problemas e encaminhando possibilidades de soluções; minimizando o conflito de interesses, sejam eles de natureza política ou empresarial, em especial durante os períodos eleitorais.

A estrutura das agências reguladoras nacionais evoluiu muito desde a sua concepção. Iniciou com corpo funcional sem vínculo permanente com o Estado, mas contando com servidores efetivos oriundos de outros órgãos. Somente em 2005 conquistou cargos próprios, com estabilidade, através de concursos públicos. A estabilidade funcional garantiu a autonomia necessária para a defesa de posicionamentos técnicos desafiados por interesses de grupos econômicos que, por sua vez, utilizam-se do poder político para atender seus objetivos comerciais. A decisão do regulador raramente satisfaz todas as partes.

As agências servem ao Estado, não aos governos, sendo desenhadas para sobreviver aos humores dos ciclos eleitorais com autonomia técnica, independente do contexto de instabilidade observada. Os setores regulados e os profissionais envolvidos só prosperam em ambientes estáveis, com previsibilidade das regras do jogo. O cidadão é o elo mais fraco da cadeia, e a missão das agências reguladoras é garantir o equilíbrio nestas relações.

Não que as decisões das agências sejam infalíveis. Mas os instrumentos de accountability, transparência e participação da sociedade em seu processo decisório, com formato colegiado, minimizam o permanente risco de captura política ou regulatória.

Foram a autonomia técnica e decisória que garantiram o poder da Anvisa em dizer “não” frente a pressões políticas diversas, como a que assistimos na queda de braço entre a agência e o governo federal durante a pandemia da Covid-19. Há de se imaginar se um conselho, vinculado ao Ministério da Saúde ou a uma de suas secretarias, teria conseguido manter suas decisões técnicas diante da pressão política exercida pelo chefe do Executivo na pandemia.

Quando o próprio governo, através de seus ministérios e secretarias, exerce diretamente o poder decisório e normativo em questões técnicas complexas, fica exposto tanto a pressões políticas diante de opções populistas ou ideológicas, quanto ao assédio lobista para atender demandas com finalidade anticoncorrenciais, desvirtuando assim o componente técnico que qualifica a tomada de decisões em benefício dos cidadãos. Cidadãos comuns, em geral, não detêm suficientes conhecimentos, dados, estudos ou a compreensão das consequências que medidas populistas, benéficas no curto prazo, possam lhes causar no futuro ou indiretamente.

Propostas legislativas como a emenda aditiva 54, na MP 1154/2023, proposta pelo deputado federal Danilo Forte (União-CE), ou a recente PEC (CD 233219503700) protocolada pelo deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL-SP) possuem em comum a transferência do poder normativo e decisório das agências para a administração direta do governo, através da criação de conselhos, vinculados a ministérios e secretarias.

Diferentes entidades do setor produtivo, lideranças dos reguladores e dos próprios setores regulados se organizaram e publicaram manifestos em defesa da autonomia técnica da regulação, de forma contundente.

A realização de audiências públicas, a serem patrocinadas pelo próprio Congresso Nacional, deverão ampliar o debate com a sociedade acerca da importância da manutenção, evolução e aperfeiçoamento do modelo regulador vigente. A manutenção da autonomia técnica das agências reguladoras é o modelo consagrado internacionalmente diante das melhores práticas regulatórias preconizadas pela OCDE.

Os mandatos fixos dos dirigentes das agências são de cinco anos, vedada a recondução, enquanto o do presidente da República, responsável pelas indicações, é de quatro anos. O Senado não tem prazo para apreciar as indicações, tratando-as ainda como moeda de troca política. A Lei 13.848/2019 tem previsão para resolver os longos períodos de vacâncias, mas o controle e monitoramento das agências pelo Congresso Nacional e pelo Tribunal de Contas da União necessitam de aprimoramentos.

Jean Tirole, ganhador do Prêmio Nobel de Economia, em sua obra “Economia do Bem Comum”, sintetiza a minha percepção sobre as necessidades mais urgentes neste debate (fl. 179):

“Por fim, uma ‘agência independente’ não deve ser (e aliás nunca é) totalmente independente: uma maioria qualificada do Parlamento deve poder suspender seus dirigentes com base em sua política global (e não por uma questão de atualidade política). Em suma, convém levar em conta a existência de conflitos de interesses, mais ou menos previsíveis ex ante, e tratá-los direta e explicitamente, antevendo procedimentos que permitam limitar seu alcance”.

 

 

CLEBER FERREIRA – Presidente do Sindicato Nacional dos Servidores das Agências Nacionais de Regulação (Sinagências). Especialista em regulação em saúde suplementar (ANS). Mestre e doutor em odontologia em saúde coletiva pela UFF.

 

Fonte: Jota.Info