A abertura do governo aos partidos aliados e mesmo recalcitrantes, pelas vias formais de cargos e ministérios, está fazendo o Executivo e o Legislativo ampliar de tal maneira as possibilidades de acomodação a ponto de tornar inevitáveis no futuro problemas de coordenação e agilidade na tomada de decisões. O governo de Lula voltou às origens, com 37 ministros alojados em 30 ministérios, mais três secretarias e quatro órgãos equivalentes a pastas. Seis deles foram reservados ao PSD, MDB e União Brasil, partido dividido que ainda não se sente representado no governo. Agora, parte-se para a divisão no segundo escalão, autarquias e estatais.
O loteamento do Estado, que no primeiro governo de Lula privilegiou o PT, agora é mais “democrático”, pois a coalizão governista é minoritária em uma Câmara dominada pelas legendas fisiológicas do Centrão. A moeda corrente das alianças voltou a ser a distribuição de cargos, depois que o PT flertou com a aceitação do orçamento secreto, antes dele ser fulminado pelo Supremo Tribunal Federal.
Para arrumar espaço a indicações político-partidárias, as restrições existentes têm de ser derrubadas, ou tornadas flexíveis a ponto da inocuidade. Um dos mais sólidos pilares da racionalidade administrativa, a lei das estatais, ruiu na Câmara ao apagar das luzes da legislatura anterior, com uma emenda de última hora a um projeto que tratava de publicidade das estatais. O fim prático da quarentena de 3 anos para ocupar cargos de direção das empresas estatais abrirá espaço para aventureiros e politicagens de sempre e o clima é propício a considerar a vedação legal como “criminalização da política”.
O projeto está parado no Senado e não serão os partidos do Centrão ou o PT que se oporão a distorcer a lei das estatais se as mudanças podem beneficiá-los. São mais de 450 cargos influentes e bem remunerados em jogo e da parte do governo não parece haver o menor interesse em preservar os limites legais.
Um alvo próximo são as agências reguladoras. Logo no início de seu primeiro governo, Lula se estranhou com elas, por não estarem subordinadas ao governo. Lula não interferiu em seus dois mandatos, mas depois as agências foram sendo aparelhadas por indicações políticas e diluindo seu caráter técnico. Uma das formas corriqueiras de miná-las por dentro foi a indicação para órgãos reguladores de participantes que trabalharam na iniciativa privada em setores econômicos por elas regulados.
Mesmo assim, sua independência provou-se valiosa, como mostrou o exemplo da Anvisa durante a pandemia, opondo-se ao charlatanismo homicida do então presidente Jair Bolsonaro. Agora, o deputado Danilo Forte (União Brasil-CE) pegou carona na MP 1154, que estabelece nova organização da Presidência e dos ministérios, e apresentou a emenda 54, subordinando as agências reguladoras aos ministérios, retirando-lhes a edição de “atos normativos” e entregando-os a conselhos políticos. Em sua composição entrariam representantes das pastas, de setores regulados, da academia e dos consumidores.
Decisões técnicas e especializadas, se a emenda vingar, serão contornadas ou escamoteadas por influências políticas e privadas, esvaziando os órgãos reguladores e reduzindo seus pareceres a mais uma opinião entre outras. A emenda anula poderes das agências, estando implícito que os ministérios estão muito mais abertos a influências políticas do que as agências em sua configuração legal. Ainda que isso possa não redundar em cargos para loteamento (ao que se sabe até agora), abre caminho para lobbies variados em decisões vitais para o funcionamento da economia.
A Câmara dos Deputados, dirigida por Lira, reeleito para o cargo com apoio quase unânime dos partidos (apenas dois não votaram nele), está tendo problemas para contentar todo mundo, em especial o maior partido da Casa, o PL, inchado pelos bolsonaristas e que conta com 99 deputados. Ontem a Câmara aprovou projeto de resolução para criar mais cinco comissões, levando o total a 30. No início eram 12 comissões. O relator, Hugo Motta (Republicanos), deu justificativa original: o aumento levava em conta a proliferação dos ministérios. Um efeito é que os projetos terão de passar por mais comissões do que antes.
“Quanto mais a gente demora para encontrar uma solução, seja para MP ou projeto de lei, mais fica caro aprovar aquelas coisas e fica cravada a desarmonia”, disse Lula aos líderes da base aliada. O presidente parece disposto a pagar o preço dos acordos com o Centrão.
Fonte: Jornal Valor Econômico