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Infomoney – Congresso pode usar “jabuti” para rediscutir papel de agências reguladoras; mercado vê risco de politização

Emenda prevê criação de conselhos formados por integrantes de ministérios, agências, setores regulados, academia e consumidores para definir normas

Uma mudança sugerida na Medida Provisória (MPV 1.154/2023) editada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para organizar a estrutura dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios pode modificar significativamente o funcionamento das agências reguladoras no Brasil.

O texto veio na forma de emenda (Emenda nº 54, clique aqui para acessar a íntegra), protocolada na última sexta-feira (3) pelo deputado federal Danilo Forte (União Brasil-CE), presidente da Frente Parlamentar de Energias Renováveis.

A ideia dele é criar conselhos temáticos, vinculados aos respectivos ministérios e agências reguladoras, que atuariam nas funções de regulação, deslegalização e edição de atos normativos infralegais.

De acordo com a proposta, integrariam os grupos representantes dos ministérios, das agências, dos setores regulados da atividade econômica, da academia e dos consumidores. Todos precisariam ser submetidos à aprovação do Congresso Nacional para assumirem as funções.

A sugestão, se aprovada pelos parlamentares, poderia alterar, de uma só vez, nove leis e uma medida provisória que regem as atividades das 11 agências reguladoras.

Seriam afetadas pela medida a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ), a Agência Nacional do Cinema (ANCINE), a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) e a Agência Nacional de Mineração (ANM).

A modificação é tratada por agentes do mercado como um “jabuti”, que possibilitaria maior interferência política em áreas técnicas sensíveis da economia brasileira, elevando a percepção de risco para investimentos e de insegurança ao ambiente regulatório em diversos setores.

Na prática, a mudança teria potencial para diluir o poder das agências reguladoras, já que decisões normativas passariam a ser divididas com um conselho temático sem garantias de critérios técnicos para a escolha de seus integrantes. Por outro lado, com a promessa de maior participação de setores da sociedade na tomada de decisões.

O presidente do Sindicato Nacional dos Servidores das Agências Nacionais de Regulação (Sinagências), Cleber Ferreira, diz que a emenda representa uma ameaça a um modelo construído ao longo de décadas para garantir autonomia técnica, financeira e administrativa às agências reguladoras do país e faz com que os órgãos passem a ser “braços operacionais” dos ministérios.

“Quando há uma emenda como essa, que retira a discricionariedade dos processos regulatórios e submete isso a um conselho que não é qualificado do ponto de vista técnico, tem-se um retrocesso no modelo. Um conselho em que o governo tem assento, assim como o setor regulado e a sociedade, é um conselho eminentemente político, e não técnico como se desenhou lá atrás”, afirma.

“Não é isso que queremos, até porque há questões sensíveis, como o estabelecimento de tarifas, o desenho de concessões de aeroportos, ferrovias, estradas, as políticas de saúde suplementar. A própria Anvisa, que vimos na pandemia como é importante a independência do órgão, em meio a toda aquela celeuma em relação às vacinas. Se a Anvisa não tivesse autonomia e o governo mandasse nela, o que aconteceria? Talvez nem tivéssemos vacina aprovada”, pontua.

Ferreira argumenta que a sociedade já participa dos trabalhos das agências, por meio de estudos de impacto regulatório, audiências públicas e consultas. Do lado dos agentes econômicos, ele sustenta que o trabalho das autarquias confere segurança jurídica às mais diversas atividades, de modo a garantir a preservação de contratos e investimentos.

“Precisamos ter essas autarquias funcionando com certa autonomia para que se garanta estabilidade, segurança, para o setor regulado e para os consumidores, de que, de um dia para o outro, a partir de uma mudança no Poder Executivo, não se tenha uma ruptura total e se passe para uma nova política que ninguém previa antes. Isso dá certa continuidade e possibilidade de os empresários investirem, garantirem empregos, de a população em ter segurança de que não vai ter alteração de tarifas”, afirma.

“Não há por que tirar a essência da autonomia [das agências] para poder justificar uma melhoria que não vai acontecer. Simplesmente vão colocar o interesse político à frente do interesse público, técnico, que hoje temos com as agências. Se isso acontecer, será melhor acabar com as agências, voltar todas as atribuições aos ministérios e economizar com os diretores. Para que ter agência se ela não tem autonomia?”, questiona.

No mercado, há uma percepção de que o assunto “caiu de paraquedas” e que pode trazer perdas relevantes aos setores regulados. “Mesmo com agências fortes, os lobbies continuaram prevalecendo, mas isso não justifica acabar com elas”, afirma um analista que acompanha de perto o setor elétrico e a atuação da Aneel. Além do risco de politização, uma das preocupações é com todo o conhecimento acumulado pela agência e seus corpos técnicos ao longo de décadas.

“Imaginando neutralidade em informações novas, haveria reação ruim dos mercados com relação a todos os setores regulados [caso a emenda fosse aprovada pelos parlamentares]. Seria custo de capital adicional para todas as empresas reguladas”, avalia.

Para ele, a emenda de autoria do deputado Danilo Forte poderia impactar mais negativamente o mercado do que eventual mudança na Lei das Estatais (Lei nº 13.303, de 2016), que chegou a ser discutida no fim do ano passado pelo parlamento, em meio à cobiça de partidos do “centrão” por mais espaços no governo, mas que não prosperou após repercussão negativa junto à sociedade.

Para o advogado Denis Camargo Passerotti, sócio do escritório Passerotti Sociedade de Advogados, a emenda pode permitir maior participação de setores da sociedade nas discussões, mas amplia os riscos de politização em instâncias que deveriam ser técnicas, com autonomia garantida e tratamento isonômico aos atores regulados.

Ele destaca que, além da emenda, há dispositivos na medida provisória original que conferem ao Ministério de Gestão e de Inovação em Serviços Públicos o direito de indicar membros para conselhos de administração das empresas públicas, sociedades de economia mista, subsidiárias e controladas e empresas em que o governo federal detenha, direta ou indiretamente, maioria do capital social com direito a voto.

“A partir do momento em que se traz questões políticas para dentro dessas agências e para dentro das próprias [empresas] estatais, acaba-se sujeitando as decisões aos interesses políticos, e não mais aos interesses econômicos”, alerta.

“Toda aquela discussão realizada em anos anteriores para se estabelecer governança corporativa, independência dos conselhos e a preservação de uma política de indicações de membros desses próprios conselhos acaba se esvaziando”, prossegue.

O deputado Danilo Forte, por outro lado, argumenta que o modelo visa “proporcionar maior clareza e controle das atividades executiva, normativa e contenciosa” das agências reguladoras, além de permitir maior participação de diferentes setores no processo decisório.

“Esse modelo possibilita maior interação entre os componentes, de modo a discriminar funções reguladoras e julgadoras, com maior transparência, responsabilidade e participação democrática”, sustenta o parlamentar em texto de justificação que acompanha a emenda.

“Dessa forma, para regular, deslegalizar e editar atos normativos infralegais, ou seja, toda a atividade normativa terá que haver a interação entre representantes do Ministério, das Agências, dos setores regulados da atividade econômica, da academia e dos consumidores, garantindo o controle e a vigilância de um poder sobre o outro em relação ao cumprimento dos deveres constitucionais”, prossegue.

O advogado Roberto Nucci Riccetto, sócio do Escritório Rubens Naves, Santos Jr. Advogados, especialista em Direito Administrativo, lembra que as agências reguladoras foram criadas para estabelecer normas sobre os setores regulados e parâmetros técnicos, conferindo maior segurança aos atos normativos. Mas observa que, ao longo dos anos, tais órgãos da administração indireta acabaram avançando sobre assuntos de influência direta na vida dos cidadãos, extrapolando competência sobre ações que caberiam ao Poder Executivo.

“A ideia parece ser trazer para a discussão desses atos normativos, que são importantes e impactam diretamente os setores vinculados, outros atores também técnicos mas não só. Em tese, é salutar ter uma discussão desses atos gerais. Muitas vezes, atos normativos são gerais, para todos os usuários, quase como leis”, avalia. Para ele, a grande questão a ser observada seria a execução da emenda, que traz apenas diretrizes sobre a composição e as atribuições dos conselhos temáticos.

“Não vejo isso como um retrocesso. Pelo contrário, está aprimorando uma instância de governança, trazendo mais participação e controle. Não podemos ter receio de instâncias de controle sobre atos normativos que impactam diretamente em políticas públicas nos setores regulados”, diz.

Leitura similar tem o advogado Cristiano Vilela, sócio do escritório Vilela, Miranda e Aguiar Fernandes Advogados, e especialista em Direito Público. Para ele, é positiva a criação de organismos que “dialoguem com os demais atores da sociedade, sem limitar a atuação das agências”. Quanto aos riscos de uso político de cargos ou apadrinhamento, ele sustenta ser papel da sociedade e dos órgãos fiscalizadores o monitoramento.

“São atores que se legitimam para a discussão. Caso haja algum tipo de nomeação que seja indevida, de pessoas e elementos muito estranhos a isso, cabe à sociedade e aos órgãos de fiscalização se posicionarem contra”, pontua.

Os dois têm a mesma leitura sobre dispositivo presente na emenda que diz que “decisões inerentes à atividade de contencioso administrativo” das agências “serão de competência exclusiva de órgão administrativo julgador independente no qual se garanta o duplo grau de jurisdição e o direito à ampla defesa e contraditório”. Para eles, o mecanismo separa as atividades do conselho temático da autarquia, que teria preservada competência exclusiva para analisar contenciosos administrativos.

Ao todo, 87 emendas foram apresentadas à Medida Provisória nº 1.154/2023 – a primeira editada por Lula desde que retornou ao Palácio do Planalto.

Para que esta emenda ou qualquer outra tenha êxito, ela precisa ser acatada pelo relator da proposição em uma das casas legislativas e votada com o substitutivo em plenário ou analisada pelos parlamentares como destaque de bancada durante apreciação do texto.

Ou seja, mesmo com eventual aprovação da medida provisória, não é certo que a sugestão apresentada pelo deputado Danilo Forte avance com a matéria.

COMO FUNCIONA UMA MEDIDA PROVISÓRIA

Medidas Provisórias são normas com força de lei editadas pelo presidente em situações de alegada urgência e relevância. Elas produzem efeitos jurídicos imediatos (ou seja, entram em vigor logo após a publicação no Diário Oficial da União), mas dependem da posterior ratificação pelas duas casas do Congresso Nacional para se converterem definitivamente em leis ordinárias.

O prazo inicial de vigência de uma MPV é de 60 dias, com possibilidade de prorrogação automática por igual período caso não tenha tramitação concluída no parlamento. Se não for apreciada em até 45 dias, contados da sua publicação, entra em regime de urgência, sobrestando todas as demais deliberações legislativas da casa legislativa em que estiver tramitando – seja ela a Câmara dos Deputados ou o Senado Federal.

Durante a tramitação no parlamento, as MPVs precisam passar por comissão mista e pelos plenários das duas Casas, onde é necessário apoio de maioria simples (ou seja, a maioria dos congressistas presentes em plenário). Caso o texto não seja votado em 120 dias ou seja rejeitado por deputados ou senadores, ele perde validade.
Fonte:Infomoney