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A produção de petróleo no país é monitorada mediante relatórios fornecidos pelas próprias produtoras e os valores recolhidos delas e distribuídos à União, estados e municípios ? os royalties ? são calculados com base em planilhas eletrônicas sujeitas a manipulações. Desde a década passada, agentes públicos de controle e especialistas alertam a Agência Nacional do Petróleo (ANP), responsável pela apuração dos dados, acerca da fragilidade do sistema que emprega apenas tabelas Excel, mas nada mudou até agora.

Nas últimas semanas, contudo, a denúncia feita por um funcionário da própria ANP no Rio de Janeiro levantou suspeitas de que o modelo arcaico de fiscalização pode ter favorecido prefeituras no repasse dos royalties ? tributos pagos mensalmente ao governo pelas empresas como compensação por danos ambientais.

O denunciante teria procurado a diretoria da ANP para apontar a desproteção das planilhas, mas acabou sendo transferido para outra função dentro do órgão, sob o argumento de ?razões administrativas?. Por meio da assessoria de imprensa, a agência reguladora garante que a punição não decorreu de perseguição ao funcionário, que expôs as fragilidades e os riscos dos sistemas de controle da produção de petróleo, mas à iniciativa de ele se intrometer em um departamento alheio à responsabilidade dele.

A gravidade das denúncias levou o Tribunal de Contas da União (TCU) a dar início, no mês passado, a uma auditoria especial para apurar os desvios do cálculo e do pagamento das participações governamentais pela ANP. O ministro José Jorge, relator do processo, informou ao Correio que aguarda os primeiros resultados da investigação para fazer comentários no momento oportuno. O TCU também espera pela definição das novas regras de distribuição dos royalties do pré-sal, em tramitação no Congresso, para planejar novas fiscalizações sobre o tema. O tribunal vai analisar ainda compensações financeiras a estados e municípios apresentados nas contas de governo.

Evidências

Antes dos pareceres do TCU, o deputado federal Arnaldo Jardim (PPS-SP) promete tornar públicos os dados consolidados que confirmem os indícios de irregularidades. Ele requisitou, no começo do mês passado, informações ao Ministério de Minas e Energia (MME) sobre os procedimento da ANP para calcular a divisão dos recursos vindos do petróleo aos municípios. A pasta teria um prazo de 30 dias para responder às indagações do parlamentar, a contar do recebimento. Até agora não se manifestou.

Mesmo que o governo não apresente os esclarecimentos, Jardim planeja expor, na Comissão de Minas e Energia da Câmara, da qual é membro, levantamentos feitos a partir de documentos e das revelações do servidor que apontou brechas no programa de cálculo dos royalties e cuja identidade é preservada.

?Em agosto, logo após a retomada dos trabalhos legislativos, quero convocar audiência sobre o tema, já aprovada na comissão?, diz Jardim. Até lá, ele espera concluir um levantamento ?para não ficar só na contestação? do MME e da ANP. ?Há fortes evidências de que as planilhas Excel são um sistema frágil e passível de manipulações, além da configuração complexa ser uma caixa-preta?, adianta.

Para o parlamentar, a desconfiança se deve à combinação de pouca transparência com acesso restrito a poucas pessoas ao programa no qual as informações são lançadas. O cálculo de quanto cada município tem direito a receber de royalties é complexo, com a incidência de muitas variáveis. Nas planilhas, estão listadas até mesmo cidades sem direito ao repasse.

?Já passou da hora de a ANP mudar o cálculo dos royalties com base em planilhas Excel da idade da pedra. Mesmo que não tenha havido qualquer transgressão, o volume de informações e de valores envolvidos justifica um investimento importante da agência na modernização do sistema?, argumenta o consultor Adriano Pires.

Ele lembra que o modelo atual, no qual são cruzados dados de produção, preço, câmbio e percentuais devidos às unidades da Federação, está em atividade há 15 anos, surgido pouco tempo depois da criação da ANP e sua transferência para o Rio. ?De lá para cá, muita coisa mudou. Antes era tudo centrado na Petrobras e os recursos eram bem menores que os atuais, de dezenas de bilhões de reais?, observa.
O geólogo Hernani Chaves, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), não considera as ferramentas digitais usadas para obter os valores dos royalties como principal fator de risco de malfeitos. ?No limite, qualquer sistema pode ser manipulado. Pouco importa, então, se é o programa é arcaico ou moderno, mas se a sua fórmula matemática está sendo rigorosamente aplicada e gerando os resultados esperados?, explica.

Para o especialista em campos exploratórios de petróleo, a única questão a ser levada em consideração pelas auditorias deveria ser a capacidade fiscalizadora da ANP. No entender dele, o rigor é necessário tanto para garantir a aplicação das metodologias de determinação dos tributos, expressas em lei, quanto para coibir abusos das empresas. Chaves lamenta o fato de o número de fiscais da agência ser insuficiente para avaliar desde postos de gasolina a plataformas do pré-sal, a 300 quilômetros da costa. A produção de petróleo é dada por medidores que podem ser vistoriados a qualquer momento pela agência, mas essa conferência ocorre geralmente quando registros mostram variações inesperadas.

Dependências

Como proposta de solução para as falhas indicadas pela denúncia, Arnaldo Jardim sugere mudanças na base informatizada do Sistema de Fiscalização de Produção (SFP) da ANP, de modo a deixar os relatórios mais objetivos e mais fáceis de serem compreendidos, além de abrir canais de acompanhamento on-line pelas prefeituras.

Em relação à dependência de informações fornecidas pelas próprias empresas fiscalizadas, o parlamentar acredita que isso pode indicar perda de autonomia em relação à iniciativa privada, fenômeno chamado de captura pelo jargão de agências reguladoras. Auditoria do TCU indica que, em vista de o valor devido de royalties ser calculado proporcionalmente ao volume de petróleo produzido, falhas nas medições podem representar perda de bilhões de reais.

A batalha federativa entre estados produtores e não produtores ao longo de quatro anos de discussão do marco regulatório para a exploração do pré-sal dá pistas sobre o elevado grau de polêmica suscitado, sem falar do explícito conflito de interesses.

No trabalho mais recente do TCU envolvendo royalties de petróleo, concluído em 2010, foram apontadas condutas equivocadas da ANP, que geraram alertas e recomendações. O tribunal reclamou da falta, por exemplo, de autorizações, pela diretoria da agência, de manuais de procedimentos referentes às principais atividades da Superintendência de Controle das Participações Governamentais (SPG), responsável pelos cálculos. Isso poderia favorecer alguns municípios na distribuição. Foi constatada também falha em relação à metodologia de cálculo para beneficiários por decisão judicial, sem aprovação da diretoria, e até mesmo irregularidades em despachos jurídicos.

Outro lado

A ANP informa ao Correio que sua diretoria se pronuncia apenas em relação a pareceres conclusivos (acórdãos) do TCU, uma etapa posterior a seus relatórios de auditoria e à apreciação do texto do ministro-relator pelo plenário. A agência ressalta que, até agora, o tribunal rejeitou a existência de indícios de falhas na medição da produção de petróleo e de gás natural ?e tampouco há referência à qualquer perda de receita?. Mas reconhece que foram feitas recomendações de aperfeiçoamento das normas e dos procedimentos adotados.

Quando as primeiras acusações chegaram ao TCU, em 2009, a ANP garantiu ser impossível desviar recursos dos pagamentos dos royalties, defendendo a segurança do sistema e o controle do acesso, o que impediria adulterações e desvios. A agência explica que a planilha é enviada ao Banco do Brasil, que recebe os recursos do Tesouro Nacional e faz o pagamento a estados e municípios. Com isso, o BB e as prefeituras colaboram com a conferência das quantias transferidas.

Fonte: Correio Braziliense, edição de 29/7