Por Williams Roosevelt Monjardim*
[…] se uma pessoa cair a uma piscina pequena ou ao mar imenso, não deixa de nadar, de qualquer maneira. […] Portanto, também nós temos de nadar e tentar salvar-nos nessa discussão, ou na esperança de que um golfinho nos leve, ou de qualquer outra salvação difícil de conseguir! (Platão, A República, 453d)
Pode parecer ociosa a proposição de um ensaio que tenha por título uma pergunta tal como: Por que sindicato? Afinal, o vocábulo sindicato já é muito comum entre nós e todos temos a seu respeito uma compreensão também já razoavelmente solidificada, quer positiva, quer negativa, quer favorável, quer contrária, ou mesmo indiferente. O certo é que todos compreendemos algo quando falamos ou ouvimos a palavra sindicato.
Não obstante todos já termos alguma compreensão acerca do vocábulo, queremos propor aqui uma ligeira reflexão. Para fazê-lo, poderíamos partir de sua etimologia, cujas origens ecoam desde a Grécia antiga. Isso, certamente, nos diria algo acerca do termo sindicato, mas correríamos o risco de nos enveredar pela esterilidade de um texto ao estilo pseudoacadêmico que poderia dizer muita coisa e correr o risco de não falar coisa alguma ou, quando muito, falar pouco. Preferimos o caminho da história e nela ver surgir como, quando, onde e porque apareceu esse fenômeno. Também não nos propusemos a fazer um longo apanhado histórico, mas tão-somente tangenciar aquilo que nos parece essencial.
Nos primórdios da revolução industrial, notadamente na Inglaterra, os operários trabalhavam em condições extremamente precárias, não raro, próximas a escravidão,[1] com jornadas que chegavam a 18h diárias para o trabalho adulto, em locais de absoluta insalubridade, e isso incluía mulheres, mesmo mães de lactentes, e idosos. Nos mesmos ambientes trabalhavam crianças em jornadas que chegavam a ser superiores a 12h. Dando apenas um entre inúmeros outros exemplos que poderiam ser compulsados aqui para ilustrar a crueldade que tais situações provocavam, a história registra que as extensas jornadas laborais, aliadas aos baixíssimos salários e executadas em ambientes de trabalho completamente hostis, eram tão brutais que havia até alguns narcóticos receitados pelos médicos, dentre eles o famoso opiáceo Godfreys’s Cordial, para que as mães operárias ministrassem a seus filhos. Afinal, essas mães famintas e extenuadas quando chegavam a casa não tinham nem condições físicas, nem mesmo leite para amamentarem seus filhos. O ópio era uma solução fácil – e às vezes única! – para que essas crianças calassem seus choros e dormissem, ainda que famintas.
* O autor é licenciado em filosofia (UFES), mestre em filosofia (UFRJ), servidor da Anatel/ES e Diretor de Formação, Organização e Política Sindical, do Sinagências (triênio 2024-2026)
[1] A esse respeito, é bem conhecida os debates realizados entre Benjamin Franklin e moralistas ingleses. Enquanto estes últimos ironizavam os Estados Unidos por ser uma nação moralmente atrasada por causa do instituto oficial da escravidão dos negros, Franklin acusava a hipocrisia britânica, ao redarguir que os escravos no sul dos Estados Unidos viviam em condições mais dignas que a dos trabalhadores “livres” britânicos.
A dura realidade foi mostrando aos trabalhadores que as relações de trabalho, aquelas que permitiam sua superexploração, eram sustentadas pelo ordenamento legal e jurídico, pelo aparato de repressão policial e por outros mecanismos públicos e privados. Aos poucos, os trabalhadores foram se conscientizando que o que conformava as relações de trabalho não se continha apenas nos limites internos das fábricas, mas que havia todo um ordenamento social, político, jurídico e repressivo que garantia sua aplicação, eficácia e continuidade.
Assim, aos poucos foi se materializando em suas consciências a noção de classe. Eles compreenderam que a relação patrão-empregado não era tão-somente uma relação de um-para-um, mas uma relação entre conjuntos de forças. A força do patrão não vinha simplesmente da força física que ele pudesse ter – e em geral não tinha – nem da quantidade de dinheiro que possuísse, e sim, que havia toda uma estrutura econômica-social-estatal que sustentava seu poder de mando.
Portanto, ainda que trabalhador e patrão fossem uma pessoa cada um se tomados com indivíduos, o poder social que eles possuíam per si era abissalmente desproporcional. Os trabalhadores compreenderam que se havia constituído todo um sistema para garantir a perpetuação das relações de exploração e que eles apenas começariam a equilibrar a balança quando também começassem a se unir enquanto classe, ou seja, organizarem-se como bloco, em conjunto a outros trabalhadores.
A lógica era óbvia: se todo o aparato patronal, social e político que promovia e garantia sua exploração se organizava em bloco, também era em bloco que os trabalhadores deveriam se organizar. Em poucas palavras, foi assim que a materialidade dos fatos, os sofrimentos experimentados, as misérias vividas, a exploração diária, mostrou aos trabalhadores que classe social não era um termo abstrato, nem um mero construto intelectual, mas que tinha realidade material presente e regulava as relações diárias. Seu salário, sua jornada de trabalho, as precárias condições nas quais vivia etc., não eram determinados apenas pela vontade do patrão, havia todo um conjunto de circunstâncias que permitia que essa vontade e seu poder de mando se exercessem.
Localizado de modo muito amplo, os primórdios da organização sindical, ou seja, da organização sistematizada dos trabalhadores, surge por volta da segunda ou terceira década do século XIX. Também é digno de registro que nesse princípio houve forte repressão policial, os sindicalistas precisaram de se refugiar na ilegalidade, houve fartas demissões de lideranças, prisões e condenações em processos judiciais etc. Mas o trem da história seguiu seu trilho e, não obstante toda repressão, o movimento sindical ganhou expressão mundial, sua força permitiu que fosse reconhecido por lei e no Brasil isso ocorreu durante o Estado Novo.[1] Por fim, avançando um largo lapso temporal e reduzindo-a uma fração de linhas, vemos que toda essa história de lutas em que inúmeros trabalhadores chegaram a perder a vida para tornar menos desigual a relação capital-trabalho, permitiu com que chegássemos nós aqui à existência, na forma do Sinagências. Nós estamos de pé sobre ombros de gigantes
[1] É claro que esse reconhecimento não foi apenas a expressão da vitória dos trabalhadores, também implicou em redução de sua capacidade de ação. Ao se permitir que o sindicato funcionasse legalmente, foi estabelecido todo um arcabouço legal que limitava sua capacidade de ação, que o impedia de se organizar e agir livremente na luta pela defesa dos direitos dos trabalhadores. Deste modo, o Estado acabou por, ao reconhecer, controlar o sindicato. Um dos exemplos claros da forma como isso se manifesta e que se aprofundou ainda mais nos dias de hoje, é a restrição que os trabalhadores têm de exercer seu direito de greve. Na prática, o direito de greve garantido pela Constituição, está quase que anulado.
Cabe aqui reforçar a lição mais básica que aprendeu a classe trabalhadora e que esteve presente desde a origem e constituição do movimento sindical: a força dos trabalhadores resulta de uma relação diretamente proporcional de sua união, de sua capacidade de organização e de luta pelo interesse comum: quanto maior a união, maior a força e o poder de pressão. O inverso da equação também é verdadeiro: quanto menor a união, também menor a força e o poder de pressão. Simples assim.
Ou melhor, não tão simples. Afinal, uma das ilusões que permearam o movimento sindical ao longo de sua história e que ainda permeia fortemente no presente é a compreensão equivocada de que separar as lutas por setores diferentes dentro de uma mesma categoria conduzirá a uma maior capacidade de pressão, ao menos para um determinado setor. Ao longo da história sempre houve aqueles que se guiaram pela lógica que se traduziu entre nós na fórmula da farinha pouca, meu pirão primeiro.
Ora, historicamente a classe patronal – no nosso caso, o governo, ressalvando-se todas as diferenças – sempre jogou com a divisão da categoria e com a captura de lideranças e de sindicatos.[1] A história do movimento sindical no mundo, e o Brasil não foge à regra, está permeada de exemplos de líderes que associados ou não a sindicatos – sendo que esses últimos mais se assemelham a franco-atiradores –, visando obter vantagens limitadas a pequenos grupos ou até mesmo vantagens individuais, traíram a totalidade de suas categorias ao conduzi-las pelos rumos do separatismo.
E a famosa união tão cantada e decantada em verso e prosa, tão fácil e eloquente nos discursos oficiais, tão elogiada nas palestras corporativas, tão instada nos cursos de coachs, parece que no pensar de muitos desses líderes não se aplica aos trabalhadores na defesa de seus interesses. No discurso oficial, a união é maravilhosa; na prática sindical, conduzem-se pelo princípio do salve-se quem puder. Ledo engano, na defesa dos interesses dos trabalhadores públicos ou privados, apenas a união de todos – e com todos, com o perdão da redundância – pode conduzir à vitória.
Pois é, palavras bonitinhas para serem ditas e que até poderiam soar bem ao se compor um argumento presente em algum infoproduto de baixa qualidade de um coach qualquer. Seria fácil repetir – embora não menos verdadeiro por isso – a obviedade de que a união faz a força. Frente a esse apelo aparentemente ingênuo pela união, surge logo um, ou melhor, dois; melhor ainda, três, ou antes, vários óbices a essa linha de argumentação. Sabemos que o pensamento individualista da lógica liberal clássica, a ética de princípios utilitaristas, agravados pelo surgimento do fenômeno da sociedade de massas e que se aprofundou, notadamente após a Segunda Grande Guerra, conduziu-nos a um profundo descrédito quanto às lutas e organizações coletivas. Um dos últimos produtos dessa lógica egoísta e individualista se cristalizou na exponenciação da lógica do self-made man na figura do empreendedor moderno.
Na prática, todos sabemos como é difícil juntar pessoas em torno de uma causa comum, mesmo que seja no restrito âmbito de um condomínio predial com poucos moradores. Associação de bairro, então, nem pensar. As dificuldades em se unir pessoas em torno de uma causa comum é, a cada dia que passa, maior. Tão grande que muitos até chegam a dizê-la impossível. Sim, esse é um fato inegável, uma realidade que se impõe ante nós como um obstáculo que não podemos fingir não existir e que se apresenta inescapável como a pedra no poema de Drummond. Que fazer?
[1] A esses sindicatos e suas lideranças que cederam e se permitiram capturar, a história relegou para eles a designação pejorativa de pelegos.
Ainda que para a decepção de alguns, dizemos que não há resposta pronta para essa pergunta. E, mais importante ainda, acrescentamos que o fato de não haver resposta pronta não significa que não existem respostas. Lembremos que um instante antes do novo surgir, por mais óbvio que possa parecer, ele não existia. É nesse momento que retomamos ao argumento platônico usado como epígrafe. Esse é um trecho extraído do diálogo A República, onde o filósofo grego está a conversar com Glauco acerca de como construir um modelo de sociedade justa.
Neste momento específico do diálogo, eles estão a tratar do papel que a educação representava em sua construção. Seu interlocutor, ao ver-se enredado em meio a questões graves e complexas, se via desorientado e nutria a certeza de que não era possível construir uma solução para elas. Platão, que não negava e muito menos fugia do tamanho da tarefa a ser enfrentada, lhe respondeu com uma analogia muito simples: se alguém cai em uma piscina ou em pleno mar, só tem uma opção: nadar. Se tiver a ventura de cair na piscina, a margem estará próxima e sua tarefa será fácil; se tiver o azar de cair em pleno mar, a margem estará muito mais distante e, consequentemente, sua tarefa mais difícil.
No entanto, independente do tamanho da tarefa a enfrentar, em ambos os casos, só lhe resta uma opção: nadar. É claro, que sempre existirão aqueles que deixarão de nadar esperando soluções mágicas ou milagrosas. No caso dos gregos, conforme ironizou o filósofo, essa solução poderia vir na forma de golfinhos, que eram animais considerados sagrados e que poderiam ser enviados pelos deuses para socorrer náufragos. Pode parecer ingênuo e engraçado a crença dos antigos helenos, mas o curioso é que ainda hoje existem aqueles que creem na salvação pelos golfinhos…
Na presença de tarefas descomunais que os servidores têm diante de si, tais como defender que as Agências cumpram seus papeis sociais na defesa do interesse público, de defender as Agências contra os constantes ataques para desmontá-las e/ou capturá-las, e além disso também lutar por sua valorização, negociar a restruturação de suas carreiras, seus salários e benefícios com um governo que adota uma política fiscal muito restritiva, política essa que conta com o apoio de diversos setores sociais, representados pela mídia corporativa, que querem cortar gastos no setor público e de uma imensa base parlamentar que também vocaliza esse mesmo mantra, só nos resta um caminho: a união. E mais ainda, não apenas a união entre os servidores das Agências, mas a união com entidades que representam servidores de outras categorias.
Isso fará com que o mar se transforme em piscina? Não. Mas nos colocará com mais disposição para nadar. Sem uma luta que una todas as forças, nossa capacidade de enfrentamento será muito pequena, se não, inofensiva, e não apenas os interesses conjuntos dos servidores mas também de toda a sociedade beneficiada pelos serviços por nós regulados fatalmente sucumbirão. Ah, sim, é claro, havia me esquecido, sempre poderemos contar com a carona de algum golfinho sagrado ou então – o que dá no mesmo –, nas palavras de quem aposta na fragmentação da luta. Bandeiras e palavras de ordem com soluções mágicas são sempre mais fáceis de se adotar e sempre há quem as empunhe. Valei-nos santo golfinho!
Nós, do Sinagências, não propomos soluções ilusórias nem que nos enganemos acerca da amplitude e complexidade da tarefa que temos pela frente. O que esta diretoria propõe é aquilo entendemos ser a única – e tão-somente única – possibilidade de resultar em vitória para as nossas lutas: a união de todos na construção de uma entidade sindical forte e representativa.
Ao dizer isso não queremos ter o privilégio de apontar unilateralmente o caminho a ser seguido, e sim, propor sua construção junto a toda a categoria. Não existem soluções prontas. A história pode nos iluminar acerca do que ocorreu em determinadas circunstâncias e é sempre prudente tê-la em nossas mãos para orientar nossas linhas de conduta. A história é sempre uma excelente bússola. Mas o que ocorreu em outro momento, em outro contexto, em outra realidade, não pode ser tomado em sua literalidade para que o repitamos agora. A história tem o condão de iluminar o passado, mas termina por deixar o futuro sempre e ainda obscuro. Ela é um guia a ser consultado, não um dogma a ser seguido.
E é exatamente por isso que estamos a construir um processo de dar voz e ouvir a todos, afinal, o melhor caminho a ser trilhado será aquele que se construirá a partir da união e da elaboração coletiva. Este sindicato é um sindicato de todos. É ouvindo-se todas as vozes, aproveitando-se a riqueza da experiência de cada um, de cada carreira, de todos, ativos e aposentados, que construiremos um sindicato forte e em condições de ser o legítimo representante da luta e da construção do bem comum. O caminho a ser trilhado não está pré-definido, deve ser fruto da construção coletiva, onde a cada dia se caminha um pouco. Ou muito, a depender de nossa força.
Por fim, finalizamos com um trecho de uma das obras do poeta espanhol, Antonio Machado:
Caminhante, são suas pegadas
O caminho e nada mais
Caminhante, não há caminho,
Faz-se caminho ao caminhar.
(Provérbios e cantares, XXVIII).