Trabalho remoto no serviço público expõe fragilidade da reforma administrativa

Proposta de uniformizar por lei um modelo único ignora a diversidade de funções e realidades do setor, reforça preconceitos contra servidores e desconsidera ganhos de eficiência já alcançados com o PGD.

Por Eduardo Calasans Rodrigues, Patrícia Soares de Moraes e Fabio Rosa

Trabalho remoto (aqui tratado também como teletrabalho ou home-office) é um tema que desperta muito interesse, seja por parte de pessoas que estudam e conhecem o tema, seja por parte de quem apenas emite opiniões, sem base em experiência ou dados da realidade.

Por mais que seja óbvio dizer que o trabalho remoto é apenas uma forma de trabalhar, há muito existente, é importante abordar, nos limites deste tema, algumas questões sobre essa prática no serviço público que podem estar sendo deixadas de lado, como, por exemplo, na proposta de reforma administrativa em pauta na câmara dos deputados.

Para começar a enxergar o tema de maneira menos superficial, vale a pena resgatar o que de fato é o serviço público brasileiro , que constitui um universo bastante heterogêneo, dividido nas esferas federal, estadual, municipal e distrital. Divide-se também em ministérios, autarquias, fundações, empresas públicas, agências reguladoras, secretarias, dentre outras instituições e órgãos com maior ou menor autonomia (no Executivo, no Legislativo e no Judiciário). Separa-se ainda pelos cargos e carreiras que o compõem, como analistas, auditores, reguladores, professores, fiscais, agentes de saúde, procuradores, juízes, escriturários, cientistas etc., cujas remunerações e estruturas de trabalho variam amplamente em cada situação.

Daí se pergunta: diante de instituições e corpos funcionais tão diferentes, seria possível dizer que existe um modelo único de trabalho remoto na administração pública? E esse(s) modelo(s) poderia(m) ser regulado(s) de maneira única, por meio de uma lei federal, que igualasse e engessasse todas as atividades e situações possíveis dentro da administração pública brasileira?

Desde já a resposta é evidentemente negativa, demonstrando a fragilidade da proposta de reforma administrativa, nesse sentido. Aliás, misturar esse tema com o dos supersalários (pagos, em geral, fora do Executivo e para poucos agentes públicos, que vivem realidades afastadas da massa laboral que sustenta as atividades públicas) é uma estratégia para confundir a percepção em relação ao que é, de fato, privilégio.

É perceptível que muitos discursos apontam para o teletrabalho como um benefício, uma dádiva, um prêmio, esquecendo-se que, em regra, o trabalho, mesmo que remoto (no sentido de estar fora da repartição pública), continua sendo um trabalho. As críticas fazem crer que o teletrabalhador está de férias sem fazer nada em casa, o que não passa de preconceito.

Trabalhar em casa, ou em qualquer outro lugar, continua sendo trabalhar. E os instrumentos para saber se as atividades realizadas são boas ou ruins, eficientes ou não, continuam sendo objeto de monitoramento por instituições públicas ou privadas. Sendo assim, a proposta de reforma ataca o fato de servidores poderem realizar suas tarefas fora da repartição pública, tentando obrigá-los a estarem sob vigilância, no trabalho presencial, colocando de lado todo o contexto de evolução tecnológica e os investimentos na transformação digital do governo, que, contraditoriamente, é um dos eixos destacados para a reforma administrativa proposta.

No mundo todo houve um boom de trabalho remoto na pandemia, acelerando uma tendência que vinha dos avanços da comunicação e da realização de atividades em nuvem, que atingiu praticamente todas as atividades econômicas. Nada mais anacrônico do que dizer que isso não funcionaria no serviço público brasileiro (mesmo considerando toda a diversidade do que é esse serviço público).

Os investimentos e capacitações realizados por muitos órgãos permitiram uma nova configuração para os serviços públicos, de modo que estes muitos deste não dependem mais da presença física dos servidores nas repartições públicas. Essa é a realidade de grande parte das atividades administrativas (incluindo aqui a avaliação de documentos e a emissão de pareceres de outros documentos de natureza técnica) realizadas diariamente, em que se utiliza sistemas eletrônicos acessados de qualquer computador com internet.

Na administração pública federal, por exemplo, em um contexto de adaptação aos normativos editados pelo Ministério da Gestão e Inovação, que vem investindo esforços no aperfeiçoamento da gestão pública, desde 2022 foi instituído o Programa de Gestão de Desempenho – PGD (https://www.gov.br/mma/pt-br/acesso-a-informacao/programa-de-gestao-e-desempenho-pgd), que trata de uma mudança de foco na gestão pública, aproveitando-se das experiências anteriores à pandemia em projetos-piloto.

O PGD é um “programa indutor de melhoria de desempenho institucional no serviço público, com foco na vinculação entre o trabalho dos participantes (micro/indivíduo), as entregas das unidades e as estratégias organizacionais (macro/institucional).”

Em quase todas as agências reguladoras, por exemplo, se utilizou a Arquitetura de Processos, construída através do desdobramento da Cadeia de Valor para formar as entregas dos processos de trabalho de cada unidade.

Isso aproxima gestores e equipes para organizarem como serão desempenhadas as atividades, de forma síncrona e assíncrona, que resultarão nas entregas pactuadas, de acordo com os objetivos institucionais.

E um dos pontos positivos do modelo atual é que o trabalho remoto não é obrigatório, assim como não é o presencial. A princípio, é possível identificar o perfil de profissional e da atividade a ser desempenhada, para que haja uma escolha racional sobre a situação que melhor se adequa à necessidade de entregas de resultados em cada setor da organização pública.

Uma proposta que queira uniformizar, por lei, uma só regra para atividades completamente diferentes, seria um retrocesso prejudicial ao serviço público, pois não atenderia ao princípio da eficiência ou da economicidade.

As atividades que demandem presença física, como atendimento ao público na repartição, ou fiscalização in loco de estabelecimentos, logicamente são realizadas presencialmente. Porém, outras atividades, em especial as eminentemente administrativas, tais como análises processuais, elaboração de notas, pareceres e normativos, preenchimento de dados, ou tantas outras feitas em meios informatizados, podem ser perfeitamente desempenhadas em qualquer lugar, independente das baias da repartição pública.

Curiosamente, na falta de debate, de fundamento técnico e de embasamento em pesquisas, por aqueles que defendem a reforma administrativa neste ponto, a questão se torna apenas uma insatisfação com a possibilidade de o trabalhador público poder realizar suas atividades fora do escritório, como se este não estivesse trabalhando, quando remoto, o que escancara um debate vazio e preconceituoso.

E veja-se que, pelo menos na esfera federal, o PGD permite o trabalho presencial, híbrido ou remoto, a partir das características das atividades desenvolvidas e do perfil dos servidores envolvidos. A gestão deve ser feita com foco na eficiência e não no microgerenciamento do tempo por controle do local de trabalho. As relações de trabalho podem evoluir com mais confiança e engajamento, sendo que os escritórios passam a existir de forma otimizada, e não como obrigação sem sentido.

E dentro dessa lógica, por que não considerar a imensa economia de recursos públicos com infraestrutura em instalações comerciais caras em grandes centros urbanos? A redução dos espaços utilizados, com menos servidores em trabalho presencial, também reflete na diminuição da máquina pública, com economia no pagamento de aluguéis milionários, contas de luz, água, internet, café, papel, contratos de limpeza, de insumos, de suporte etc.

Para as cidades, principalmente os grandes centros, o trabalho remoto pode representar oportunidade de repensar o espaço público de forma mais inclusiva, com mais natureza e lazer, menos poluição e alternativas de mobilidade.

Representa mais uma possibilidade de combater a falta de projetos de moradia popular para ocupação dos grandes centros, que não podem ficar à espera do retorno presencial de trabalhadores para manter retornos financeiros do setor imobiliário e desses fundos de investimento.

Concluindo, portanto, percebe-se que engessar o Executivo, por meio de uma lei ou de uma emenda constitucional, não é socialmente e evolutivamente racional, além de questionável juridicamente, dado que esse tipo de organização do serviço deveria competir ao Poder Executivo.

O ponto ideal para o trabalho remoto deve ser o que cada órgão e entidade verifique se adequar melhor às suas necessidades, de acordo com as atividades realizadas, com as ferramentas disponíveis e com a maturidade institucional.

A crítica sem embasamento é irresponsável e demonstra desconhecimento do assunto, expondo a insegurança daqueles que podem estar defendendo outros interesses, à procura do bode expiatório de sempre: o serviço público.

Eduardo Calasans Rodrigues é especialista em regulação da ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
Fabio Rosa é presidente do Sinagências – Sindicato Nacional dos Servidores das Agências Reguladoras.
Patrícia Soares de Moraes é presidente da Assetans – Associação dos Servidores e demais Trabalhadores da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

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Fonte: Ascom/Sinagências