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O perigo da regulação capturada pelo Executivo

As agências reguladoras autônomas disciplinam a atividade empresarial em setores sensíveis como energia elétrica, petróleo, telecomunicações, concorrência, saneamento, água e saúde suplementar. Pelo ângulo jurídico, sua criação foi uma conquista institucional quase surpreendente, com efeito transformador em nosso direito público. Pelo ângulo econômico, elas são o segredo tanto do equilíbrio dos setores sensíveis, como da viabilidade dos complexos projetos de parceria público-privada de que o Brasil precisa.

O que elas têm de especial? A expertise técnica, a transparência e a ampla autonomia para deixar os políticos à distância. Agências decidem segundo as melhores regras de processo administrativo. Elaboram estudos técnicos de diversos tipos para embasar decisões. Fazem consulta pública sobre minutas de regulamento e de edital. Divulgam as críticas. Discutem publicamente razões e divergências. Motivam formalmente cada um dos seus atos. No interior das agências, os assuntos não podem ser distribuídos segundo o gosto de autoridades ou interessados, mas sempre pelas regras de competência.

O poder Executivo, especialmente nos níveis mais altos, segue outro sistema decisório, bem menos formal. Estudos técnicos, se é que existem, não são divulgados. Minutas são debatidas só internamente e com pessoas escolhidas por critério discricionário. Divergências e contribuições permanecem em sigilo. Os assuntos podem mudar de mãos segundo a intensidade das pressões. O grande público só fica sabendo do resultado pelo Diário Oficial.

Comparado a essas práticas, o sistema das agências foi, portanto, um grande avanço jurídico. Mas, talvez pelo ceticismo generalizado para tudo que é estatal, bem pouca gente no Brasil parece acreditar nas agências e nesses avanços. Indiferente, a opinião pública simplesmente não liga para elas.

Assim, o mundo político fica bem livre para sabotá-las quando conveniente. Políticos tendem a tratar qualquer assunto como simples jogo de poder: tudo é negociável, e ganha quem angaria mais apoio. Para eles, não existe técnica. E as coisas ficam mais fáceis se também não existirem regras. A abulia da opinião pública tem permitido que, mesmo contrariando as promessas legais, o poder Executivo, com seu estilo mais solto, vá assumindo decisões regulatórias importantes. Até quando vamos seguir esse caminho?

Há alguns anos, em um caso envolvendo a Agência de Transportes Aquaviários – Antaq, a Presidência da República editou uma problemática orientação. Uma empresa, insatisfeita com certa decisão regulatória, recorrera ao ministro dos Transportes, que não tem ascendência hierárquica sobre a agência. Indo o assunto ao presidente, este, em vez de aproveitar a oportunidade para reforçar o compromisso com a autonomia das agências, preferiu a tese de que o Executivo é mais importante, mais legítimo, tem um amplo e vago poder para fixar políticas, além da última palavra em qualquer assunto. O tom estava dado.

A fragilização das agências e a reversão política de suas deliberações são um caminho muito perigoso

Recentemente, essa linha de orientação vem desestabilizando a Aneel e o setor elétrico.

A modelagem dos leilões para compra de energia elétrica de novos empreendimentos de geração, por exemplo, tem sofrido a interferência do Ministério das Minas e Energia. Por meio de portarias, este vem assumindo a fixação de regras que vão muito além das simples diretrizes que a legislação prevê. Com isso, perdem espaço a agência e o processo decisório mais técnico e transparente.

Outro caso é ainda mais expressivo. Nas concessões de geração de energia outorgadas por leilões no início dos anos 2000, a responsabilidade pela obtenção das licenças ambientais ficou com as concessionárias. Mas houve grande demora nos trâmites de licenciamento ambiental. Passados mais de 10 anos, muitas licenças ainda não saíram. E os empreendimentos continuam na estaca zero. As concessionárias foram então à Aneel requerendo a dilatação do prazo das concessões. A Aneel reconheceu expressamente sua própria competência para o caso e deu razão às concessionárias. Mas algo aconteceu fora dos autos e a agência preferiu remeter o assunto ao ministério das Minas e Energia, que não era competente na matéria. E aí o ministério decidiu em sentido diametralmente oposto ao da agência.

A fragilização das agências e a reversão política de suas deliberações são um caminho muito perigoso. Em primeiro lugar porque o fortalecimento do estado de direito no Brasil exige a observância, pelos próprios organismos estatais, das regras jurídicas. Além disso, porque o modelo de agências pretendia justamente imunizar a regulação frente ao jogo político. Tal imunidade foi avaliada como necessária para a tomada de decisões melhores, mais embasadas tecnicamente e ao mesmo tempo legitimadas pela ampla transparência e participação dos interessados. Mas tudo isso ficará desmoralizado e perdido se o Executivo tiver um poder de intervenção ditado pelas necessidades da política.

A experiência desses longos anos já demonstrou que as agências funcionam melhor que o Executivo. De início, elas foram acusadas de capturáveis pelos agentes regulados, de significarem a terceirização do poder das autoridades eleitas ou de instrumentos do capital contra os consumidores. Mas, contrariando as suspeitas iniciais, elas têm demonstrado atuar sob um processo administrativo formal com oportunidade de participação e bom nível de transparência. O contraste com a forma de decidir do restante da administração pública fala por si.

Quando as agências reguladoras são desestabilizadas, o que se está sabotando são valores como esses. Para atrair novos investimentos, celebrar bons contratos de parceria público-privada, ter uma relação adequada entre Estado e regulados, enfim, para acelerar e manter nosso desenvolvimento, nenhum caminho pode passar ao largo do novo direito público.

(*) Carlos Ari Sundfeld é presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP), professor da Escola de Direito da FGV-SP e autor do livro Direito Administrativo para Céticos (Ed. Malheiros).