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Por Marco Antônio Sperb Leite¹

O Estado democrático moderno deve ampliar seu papel regulador em detrimento do Estado produtor de bens e serviços, permitindo concentrar seus esforços e gastos nas atividades essenciais de educação, saúde e segurança. Nessa configuração, a regulação tem o papel de estabelecer o equilíbrio entre interesses privados (competição, exploração lucrativa de atividades econômicas) e as metas e objetivos de interesse público (universalização dos serviços, redução das desigualdades, respeito aos direitos do usuário, modicidade de preços e tarifas, além de maiores investimentos).

Essa profunda mudança no perfil do Estado exige o aperfeiçoamento tecnicamente consistente das instituições reguladoras, pois muitas vezes a regulação independente contraria grandes e poderosos interesses econômicos e ideológicos.

A ANAC – Agência Nacional de Aviação Civil, após longo período de gestação, nasce no Governo Lula como uma agência reguladora que substitui o velho DAC – Departamento de Aviação Civil. No nascedouro da nova Agência, que nem local físico tinha para se instalar, aconteceu o acidente com o avião da Gol, seguido daquilo que a mídia chama de apagão aéreo. Some-se a isso a natural má vontade dos ex-dirigentes do extinto DAC, a maioria militares da aeronáutica, devido à perda do poder.

A ANAC é herdeira das normas e resoluções do DAC, baseadas no Código Brasileiro de Aeronáutica, que por sua vez segue as normas internacionais acordadas na OACI – Organização da Aviação Civil Internacional. E o rigor da fiscalização dos aviadores e das aeronaves é exercido de forma considerada exagerada por muitos estudiosos do assunto. Então, onde está a falha do sistema? Na falta de regulação e não de regulamentação.

Cabe ao órgão regulador, como organismo de Estado e não de governo, estabelecer o equilíbrio entre os interesses dos governos (muitas vezes premidos pela pressão política do momento), dos usuários e dos empresários. E é exatamente isso que está faltando para o setor aéreo brasileiro.

Se a mídia criou o termo apagão aéreo numa clara ligação com a crise de energia sofrida pela Brasil em 2002, é importante que se diga que o setor elétrico contou com uma agência competente, a ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica, que está regulando de forma eficaz o sistema elétrico, permitindo inclusive redução de tarifas em centros importantes como São Paulo. E o apagão aéreo foi anunciado por estudos que mostram que o crescimento do setor aéreo não foi acompanhado de melhoria proporcional na infra-estrutura dos aeroportos. E isso não é só para o setor aéreo. Economistas afirmam que o crescimento econômico regular de 5% ao ano é impossível para o Brasil, pela falta de infra-estrutura em diversos setores como portos, estradas e armazéns. E o setor aéreo cresceu 12% ao ano, nos últimos 4 anos!

O aeroporto de Congonhas em São Paulo é o grande exemplo da falta de regulação. A pressão das companhias aéreas, com sua sede crescente de lucro, fez com que governos fracos cedessem e Congonhas – há décadas condenado para esse fim – voltasse a ser um aeroporto de conexão, o aeroporto mais movimentado do Brasil. As dimensões da pista exigem um pouso de precisão, e a falta de áreas de escape adequadas tornam a operação de pouso crítica. Os aviadores e os leitores de revistas especializadas de aviação certamente conhecem relatos de comandantes de aeronaves com sérios problemas de pouso em Congonhas, especialmente em dias de chuva.

A pressão dos passageiros pelo conforto de embarcar em um aeroporto próximo ao centro de negócios da maior cidade do Brasil é enorme. E são os usuários freqüentes do avião como meio de transporte – empresários, funcionários graduados de grandes empresas e autoridades, que exercem essa pressão. A massa de usuários casuais não exerce pressão definitiva, limitando-se a um eventual bate-boca no balcão da companhia que os trata como boiada.

E um governo que quer fazer "média" com a opinião pública, como quase todos os governos, não vai contra os usuários poderosos e as companhias aéreas, cedendo à pressão. Por ironia do destino, foi a TAM uma das empresas responsáveis pela volta de Congonhas como aeroporto de conexão, após o mesmo ter sido colocado como aeroporto para as Pontes Aéreas São Paulo – Rio e Belo Horizonte e vôos regionais. A TAM fazia o seguinte: decolava de Porto Alegre, pousava em Viracopos e, sem parar o avião, decolava e pousava em Congonhas, numa operação conhecida na aviação como toque e arremetida. Tecnicamente tinha vindo do interior de São Paulo, Campinas, e o vôo era considerado regional. Tinha mais passageiros e a Varig e Vasp acabaram com a brincadeira e tudo voltou como era antes, um aeroporto de conexão.

É o momento da ANAC dizer a que veio; é o momento de exercer sua autoridade estabelecida na Lei que a criou. Reunir o Conselho Nacional de Aviação, contratar os serviços de especialistas na área e redefinir a malha e os serviços da aviação no Brasil. Redefinir a malha aérea é necessário, pois a aviação no Brasil, em que pese o enorme crescimento do número de passageiros, deixou de servir muitas cidades. A concessão de linhas altamente lucrativas deve ser acompanhada da exigência de serviços às linhas menos lucrativas. Regular é isso: pensar o sistema como um todo, em longo prazo.

Como aviador não-profissional, não poderia deixar de prestar a minha homenagem aos nossos competentes profissionais da aviação, tidos entre os melhores do mundo, nesse momento de dor. E pedir que sejam cada vez mais profissionais, não aceitando as pressões das companhias e dos patrões que muitas vezes forçam pousar em perigosas pistas molhadas, sem áreas de escape, sem instrumentos adequados para um pouso de precisão, como era o caso cada cabeceira usada pelo avião da TAM; em dúvida, arremetam e pousem em aeroportos mais seguros. Sei que isso pode valer o seu emprego, mas a sua vida – e a dos outros – é mais valiosa.

Como membro da diretoria de uma escola de aviação, o Aeroclube de Goiás, lembro aos usuários da aviação que ela é uma atividade segura. Nas ruas e estradas brasileiras em 2006, mais de 10 mil pessoas perderam suas vidas. De acidentes aéreos morreram 241 pessoas, incluídos as vítimas do acidente da Gol. Poderia ter sido uma só morte dos 40 milhões de passageiros aéreos transportados em 2006, que já seria lamentável. Mas em termos relativos o número de vítimas está diminuindo, fruto de uma política de investigação de acidentes do Sipaer – Sistema de Investigação de Acidentes Aeronáuticos, que busca muito mais a causa do que o responsável. Não é a Polícia Federal, conforme ordenou o Presidente Lula, que vai determinar a causa; bravatas desse quilate desequilibram um sistema que já está fragilizado, como foi feito com a desautorização à hierarquia militar no caso dos controladores, erro corrigido de forma autoritária e traumática em 22 de junho passado, onde até prisões de controladores aconteceram.

O que precisamos é de autoridade e de soluções técnicas para o setor, e não de autoritarismo, muito menos de bravatas. Fortalecer a regulação do setor é a saída para a aviação brasileira.

¹Marco Antônio é físico, professor da Universidade Federal de Goiás, ex-diretor da Agência Goiana de Regulação, ex-diretor da Abar, Piloto Privado e Diretor do Aeroclube de Goiás.